domingo, 8 de abril de 2007

HISTORIETA

Quando os olhares se cruzaram, ambos estavam a olhar para outro lado e não deram por nada. Há momentos assim; decisivos, se bem que, de tão fortuitos, acabam por se revelar irrelevantes, na roda do acaso. Fizeram por disfarçar o embaraço com uma sandes em cada mão e uma garrafa de água em cada bolso. Em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade. Sentiam que a cidade lhes apertava o cerco e acertava ao perto. Acertaram os relógios e apertaram o passo. Passaram as sandes de uma para a outra mão, o que não adiantou grande coisa em termos relativos, ou seja, continuaram sem nenhuma mão livre. Resolveram, por isso, começar a falar pelos cotovelos. Devo dizer-lhe –começou o primeiro- que não confio em ninguém, p’r’além de mim e da minha mãezinha… acho tudo isso muito bonito – deixou cair o outro- só espero que a sua mãezinha lhe acuda, se a coisa der para o torto…continuaram a olhar cada um para seu lado, como se não se conhecessem, o que era o caso, aliás. Muito bem – cortou o primeiro, parando de repente e encarando o outro com ar desafiador. Primeiro olhou-o de cima, com o ar que não deixava dúvidas sobre quem mandava ali, naquele momento. Depois experimentou olhá-lo de baixo, com o ar de quem já viu tudo o que havia a ver e estava só a fazer por parecer interessado. Por fim, olhou-o de lado, com desconfiança e foi isso que lhe chamou a atenção. Você – recomeçou, agora mais lentamente- você ponha isto na cabeça –enquanto lhe estendia um chapéu de palha, um pouco gasto, mas ainda em bom estado. Preferia não o fazer –respondia agora o outro sentando-se no muro de pedra, sobre o abismo- essas coisas alegres dão-me um ar sombrio, para além de que já tenho, na minha cabeça, muita coisa com que me preocupentear. Com um gesto despreocupado, rodou o corpo, atirando as pernas sobre o muro, para o outro lado. Ficou a vê-las cair pela ravina escarpada e tudo. Lá se vão elas – apontava para as pernas que caíam, aos trambolhões, batendo nas pedras aguçadas, ravina abaixo- é o chamado pernas para que vos quero… você tem a noção –atacava agora o primeiro – que o que acaba de fazer é uma perfeita estupidez! – via-se que o homem estava em brasa. Você acaba de me cortar as pernas! Carago! O outro ria, agarrando a barriga para não cair do muro. Arre porra! Engraçado você falar nisso das pernas!... Acha mesmo engraçado? –cortou o primeiro. O outro parara de rir quando se levantou de um salto, como se uma mola lhe saísse do cu, o que de facto acabava de facto de lhe acontecer. Saltando por sobre o insólito da situação, gritava-lhe agora em solavancos semióticos: e você acha que, depois disto, a nossa conversa ainda tem pernas para andar?!...

Nota do autor:
De facto a conversa estava condenada à partida. Todo o encontro, aliás. Lembram-se do que vos disse, no início?... "Quando os olhares se cruzaram, ambos estavam a olhar para outro lado".

1 comentário:

Anónimo disse...

não li tudo
é difícil hoje em dia conseguirmos ler qualquer coisa até ao fim
mas do que li...
siga para livro... hoje em dia segue tudo para livro
porque tb ninguém os lê até ao fim