quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006
vai discursar o 1º ministro.
a assembleia está repleta de rostos graves e atentos.
a voz off descreve o ambiente: "vai discursar o 1º ministro..." e a voz off faz uma pausa.
sobrepoem-se os dois silêncios, o da voz off e o da assembleia que espera as palavras do 1º ministro.
vai discursar o 1º ministro e quando começa, recomeça também a voz off descrevendo o 1º ministro, que "veste fato italiano, camisa de popelina, risco ao lado, gravata de seda, os sapatos, muito chique", cada gesto e inflexão de voz; a voz off chama o comentador à conversa, que explica as escolhas da ministerial farpela e o simbólico significado de cada gesto e inflexão.
o 1º ministro pára para beber água. a voz off anuncia que "o 1º ministro parou p'ra beber água". o 1º ministro bebe água. os dois silêncios sobrepoem-se, do ministro e da voz off. o 1º ministro recomeça a falar. a voz off continua no mesmo exercício anterior até às palmas finais...
"e parece que acaba de terminar o discurso em que o 1º ministro veio anunciar que... ?"
uma 3ª voz, ainda mais off completa a frase: "que vai aumentar o IRS!
"ah! (- voz off): é chique!"
terça-feira, 14 de fevereiro de 2006
& às vezes olhando bem
p’ra certas coisas que faço
penso que a mim me coube
ai o papel de palhaço
ai o papel de palhaço
equilibrado num fio
suspenso sobre um abismo
ai de causar calafrio
equilibrado num fio
& lá em baixo na pista
rufam pandeiros tambores
pela morte do artista
& lá em baixo na pista
em suspenso a multidão
espera ansiosamente
vê-lo estatelar-se no chão
& em suspenso a multidão
espera p’lo passo fatal
para o poder aplaudir
numa risota geral
espera p’lo passo fatal
espera que ele dê o tal passo
que ele leve até ao fim
o seu papel de palhaço
mas ei-lo que pára a meio
levanta um pé pára de novo
& desapertando a braguilha
mija em arco sobre o povo
21 maio 84
p’ra certas coisas que faço
penso que a mim me coube
ai o papel de palhaço
ai o papel de palhaço
equilibrado num fio
suspenso sobre um abismo
ai de causar calafrio
equilibrado num fio
& lá em baixo na pista
rufam pandeiros tambores
pela morte do artista
& lá em baixo na pista
em suspenso a multidão
espera ansiosamente
vê-lo estatelar-se no chão
& em suspenso a multidão
espera p’lo passo fatal
para o poder aplaudir
numa risota geral
espera p’lo passo fatal
espera que ele dê o tal passo
que ele leve até ao fim
o seu papel de palhaço
mas ei-lo que pára a meio
levanta um pé pára de novo
& desapertando a braguilha
mija em arco sobre o povo
21 maio 84
CASAL VENTOSO #1
Não, não vi os melhores espíritos da minha geração
morrendo à fome, histéricos, nús…
Nem anjos de cabeleiras loiras adejando por sobre os telhados do Casal Ventoso.
Vi o junkie de cócoras, cagando indiferente, à beira da estrada.
E os autocarros a passar cheios de outros junkies sujos e cambaleantes.
Vi as barracas na cerca de rede.
Um amontoado de tábuas apanhadas no lixo e trapos imundos,
restos de cobertores ensopados de mijo e água da chuva.
Vi-os em fila à espera da sopa.
Vi-os espalhados pela encosta, em pequenos grupos silenciosos.
Vi-os e fizeram que não me viram,
olhos vidrados, faces macilentas, andar arrastado.
E sei que naqueles olhos nunca há-de brilhar nenhuma estrela.
Sei que naqueles olhos só a noite se adensa.
E cada vez mais.
E que nenhum clarão de génio os há-de iluminar.
Que aqueles passos nunca os hão-de levar a nenhuma clareira de nenhum bosque encantado.
Vi-os submissos esmolando a seringa,
Vi-os tartamudeando frases sem nexo -
códigos vazios de sentido -
Vi-os perseguindo a própria sombra,
definhando,
todo o corpo exalando um insuportável cheiro a morte.
Pois não, não vi os melhores espíritos da minha geração.
Ou então se os vi não dei por isso.
Não tive essa poética ventura.
Os que vi
pouco mais eram que sombras
num equilibrio de sombras
entre o brilho metálico
das avenidas, em hora de ponta.
Os que vi
escondiam-se em tocas sujas
olhos piscos
cegos pela luz do aço na lâmina dos carris.
Escondiam a nudez por entre o lixo.
Por entre o lixo escondiam a própria fome.
De sagrado só tinham a urgência de facas cortando a pele.
Feridas de outras guerras
o sangue coagulado no tempo
Um vazio cheio de restos de comida, cartão velho, televisões partidas e um enorme cheiro a merda e água dos despejos.
Foi aí que ergueram o seu trono,
aí que limitaram o seu reino,
os melhores espíritos da minha geração.
A cavalo num burro
tomaram o céu de assalto
e o céu caíu-lhes em cima da cabeça.
O céu começou a chover-lhes cabeças de burro.
O ar encheu-se de gritos.
Partiu-se-lhes a mola do tempo,
enquanto ouviam passar os comboios,
perdendo-se no túnel,
devorando as entranhas da terra…
Os melhores espíritos da minha geração
andam à rasca a mostrar o cú a ministros
ou a dar o cú ao poder sodomita.
Mas esses não são os melhores espíritos da minha geração,
nem de geração nenhuma…
mas são os que temos.
Outros perdem-se em tertúlias, estúrdias, estapafúrdias.
A esses, a família enlutada deseja rápidas melhoras.
Então, por onde é que eles andam, os melhores espíritos da minha geração?!
Não, não vi os melhores espíritos da minha geração
morrendo à fome, histéricos, nús…
Nem anjos de cabeleiras loiras adejando por sobre os telhados do Casal Ventoso.
Vi o junkie de cócoras, cagando indiferente, à beira da estrada.
E os autocarros a passar cheios de outros junkies sujos e cambaleantes.
Vi as barracas na cerca de rede.
Um amontoado de tábuas apanhadas no lixo e trapos imundos,
restos de cobertores ensopados de mijo e água da chuva.
Vi-os em fila à espera da sopa.
Vi-os espalhados pela encosta, em pequenos grupos silenciosos.
Vi-os e fizeram que não me viram,
olhos vidrados, faces macilentas, andar arrastado.
E sei que naqueles olhos nunca há-de brilhar nenhuma estrela.
Sei que naqueles olhos só a noite se adensa.
E cada vez mais.
E que nenhum clarão de génio os há-de iluminar.
Que aqueles passos nunca os hão-de levar a nenhuma clareira de nenhum bosque encantado.
Vi-os submissos esmolando a seringa,
Vi-os tartamudeando frases sem nexo -
códigos vazios de sentido -
Vi-os perseguindo a própria sombra,
definhando,
todo o corpo exalando um insuportável cheiro a morte.
Pois não, não vi os melhores espíritos da minha geração.
Ou então se os vi não dei por isso.
Não tive essa poética ventura.
Os que vi
pouco mais eram que sombras
num equilibrio de sombras
entre o brilho metálico
das avenidas, em hora de ponta.
Os que vi
escondiam-se em tocas sujas
olhos piscos
cegos pela luz do aço na lâmina dos carris.
Escondiam a nudez por entre o lixo.
Por entre o lixo escondiam a própria fome.
De sagrado só tinham a urgência de facas cortando a pele.
Feridas de outras guerras
o sangue coagulado no tempo
Um vazio cheio de restos de comida, cartão velho, televisões partidas e um enorme cheiro a merda e água dos despejos.
Foi aí que ergueram o seu trono,
aí que limitaram o seu reino,
os melhores espíritos da minha geração.
A cavalo num burro
tomaram o céu de assalto
e o céu caíu-lhes em cima da cabeça.
O céu começou a chover-lhes cabeças de burro.
O ar encheu-se de gritos.
Partiu-se-lhes a mola do tempo,
enquanto ouviam passar os comboios,
perdendo-se no túnel,
devorando as entranhas da terra…
Os melhores espíritos da minha geração
andam à rasca a mostrar o cú a ministros
ou a dar o cú ao poder sodomita.
Mas esses não são os melhores espíritos da minha geração,
nem de geração nenhuma…
mas são os que temos.
Outros perdem-se em tertúlias, estúrdias, estapafúrdias.
A esses, a família enlutada deseja rápidas melhoras.
Então, por onde é que eles andam, os melhores espíritos da minha geração?!
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