terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

CASAL VENTOSO #1



Não, não vi os melhores espíritos da minha geração
morrendo à fome, histéricos, nús…
Nem anjos de cabeleiras loiras adejando por sobre os telhados do Casal Ventoso.
Vi o junkie de cócoras, cagando indiferente, à beira da estrada.
E os autocarros a passar cheios de outros junkies sujos e cambaleantes.
Vi as barracas na cerca de rede.
Um amontoado de tábuas apanhadas no lixo e trapos imundos,
restos de cobertores ensopados de mijo e água da chuva.
Vi-os em fila à espera da sopa.
Vi-os espalhados pela encosta, em pequenos grupos silenciosos.
Vi-os e fizeram que não me viram,
olhos vidrados, faces macilentas, andar arrastado.
E sei que naqueles olhos nunca há-de brilhar nenhuma estrela.
Sei que naqueles olhos só a noite se adensa.
E cada vez mais.
E que nenhum clarão de génio os há-de iluminar.
Que aqueles passos nunca os hão-de levar a nenhuma clareira de nenhum bosque encantado.
Vi-os submissos esmolando a seringa,
Vi-os tartamudeando frases sem nexo -
códigos vazios de sentido -
Vi-os perseguindo a própria sombra,
definhando,
todo o corpo exalando um insuportável cheiro a morte.
Pois não, não vi os melhores espíritos da minha geração.
Ou então se os vi não dei por isso.
Não tive essa poética ventura.
Os que vi
pouco mais eram que sombras
num equilibrio de sombras
entre o brilho metálico
das avenidas, em hora de ponta.
Os que vi
escondiam-se em tocas sujas
olhos piscos
cegos pela luz do aço na lâmina dos carris.
Escondiam a nudez por entre o lixo.
Por entre o lixo escondiam a própria fome.
De sagrado só tinham a urgência de facas cortando a pele.
Feridas de outras guerras
o sangue coagulado no tempo
Um vazio cheio de restos de comida, cartão velho, televisões partidas e um enorme cheiro a merda e água dos despejos.
Foi aí que ergueram o seu trono,
aí que limitaram o seu reino,
os melhores espíritos da minha geração.
A cavalo num burro
tomaram o céu de assalto
e o céu caíu-lhes em cima da cabeça.
O céu começou a chover-lhes cabeças de burro.
O ar encheu-se de gritos.
Partiu-se-lhes a mola do tempo,
enquanto ouviam passar os comboios,
perdendo-se no túnel,
devorando as entranhas da terra…
Os melhores espíritos da minha geração
andam à rasca a mostrar o cú a ministros
ou a dar o cú ao poder sodomita.
Mas esses não são os melhores espíritos da minha geração,
nem de geração nenhuma…
mas são os que temos.
Outros perdem-se em tertúlias, estúrdias, estapafúrdias.
A esses, a família enlutada deseja rápidas melhoras.
Então, por onde é que eles andam, os melhores espíritos da minha geração?!

1 comentário:

Anónimo disse...

Prometi-me não comentar mais,mas...adorei, adorei ...