sexta-feira, 21 de julho de 2006

OH ANHUCA TRAZ-ME BURRIÉS”



Entrou no café e disse: oh anhuca traz-me burriés!
Ele devia saber que muita gente não gosta de ser tratada de certas maneiras.
O rapaz rodou sobre os calcanhares e fitou-o nos olhos.
Toda a gente se calou. Os que estavam sentados e os que estavam de cócoras. Os que estavam deitados, a maioria já estava a dormir. Alguns até roncavam. Aliás, o ronco desses era a única coisa que se ouvia, nesse momento, em toda a sala. Como se uma legião fantasma de burriés gigantes avançasse sobre as cabeças de todo o mundo sem que nada o pudesse impedir.
E ficaram assim um bocado. Há quem diga que terá sido um bom bocado. Mas a maioria desses provou-se entretanto sofrerem do sindroma do pastel de nata. Perde-se a noção do tempo.
Então? Repetiu ele. Aquela insistência veio adensar ainda mais a tensão que já pairava no ambiente. O rapaz não pestanejou, continuando a olhá-lo fixamente nos olhos, sem se mexer. A situação ameaçava eternizar-se, quando a porta se abriu e entrou uma lagosta suada e a correr que nem uma sapateira. Todos os olhares caíram sobre a recém chegada. Depois de se levantarem, voltaram aos olhos dos presentes acabados de desembrulhar, enquanto a lagosta se assoava a este guardanapo. É verdade! Este mesmo que aqui vêem. É aliás a única prova de que tudo se passou realmente e nada disto é fruto da minha imaginação, ou vontade de vos agradar e entreter com histórias de fantasia e absurdo.
Parada no meio da sala, alvo de todos os olhares, a lagosta sentia-se um pouco desprotegida e ridícula. Olhou-os a todos em volta girando as antenas, como se procurasse o National Geographic das lagostas. A temperatura em volta ia gelando à medida que a água aquecia p’ró banho. Ninguém se arriscava a mexer um dedo, um café, ou sequer onde não fosse chamado. Um silêncio religioso e contundente escorria p’las prateleiras dos salgadinhos. O tempo pingava da torneira da tuborg. A lagosta desejava ter nascido no Minho, chamar-se Augusta e viver casada com um guarda-florestal.
O rapaz avançou um passo. Arrastava os calcanhares de forma provocadora e cínica, que lhe dava cabo das solas e nem produzia grande efeito. Parou dois metros mais à frente. Era perceptível já, a espuma que lhe começava a escorrer p’lo canto da boca e p’lo nariz. As pessoas na sala agarravam-se às cadeiras, batendo os dentes com o frio, que era cada vez maior.
A lagosta arrastava-se discretamente p’lo chão, tentando sair de cena, o mais rapidamente possível, sem ser notada. É fantástica a capacidade das lagostas, de se disfarçarem para escapar aos predadores e pessoas com mau feitio. Algumas espécies conseguem assumir formas estranhas, como rissol de camarão, ou chamussa de frango com caril.
O rapaz fez então uma coisa assombrosa. Abriu ainda mais os olhos e falou p’los cotovelos. Literalmente p’los cotovelos. Claro que, como tinha as mangas por cima, a voz saia-lhe um pouco abafada, mas dava perfeitamente para perceber o que dizia e o tom em que o fazia. Burriés! Burro és!
O sangue gelou-se nas veias e artérias principais das pessoas e dos animais. Tinham acabado de ouvir a pior coisa que alguém podia ouvir ao cimo deste mundo e continuar vivo, como se não tivesse ouvido nada! A mais antiga praga, o mais violento esconjuro que os Antigos deixaram em tenebrosa herança, sinistro legado.
Via-se que ele não estava a ver a verdadeira dimensão do problema, mas, mesmo assim, qualquer coisa o deve ter alertado. Olhou em volta e esboçou um sorriso. Deveria dizer: forçou um sorriso. Depois, olhando para a lagosta e coçando a cabeça, também ele se começou a transformar em carapau de escabeche. Há quem garanta que ainda sugeriu tremoços, se fosse possível; mas também isso não é certo e mesmo se fosse, não era relevante para a narrativa, nem adiantaria nada à verdade dos factos.
Quanto ao guardanapo. Sim senhor. Limpem-se os senhores a ele, que eu por mim, lagosta, nem aprecio muito.

Platex sed lex. Disse-lhe ele com um ar profissional e descontraído. O mesmo ar com que percebeu que não o estava a convencer. Por isso tentou a volta por outro lado. É o material que se usa agora, amigo! Tem aqui para a vida inteira. E quem lhe disse, respondeu com ar desconfiado, que eu vou durar esse tempo todo?!
Ele defendia a tese que era preciso partir as pernas a um gajo primeiro, para depois ele aprender a andar. Uma teoria que ele defendia com um sorriso, enquanto levava a cerveja à boca.
Já devia passar das 6 da tarde e o movimento lá fora tornava-se ruidoso e impaciente. Sabia que podia confiar no empregado da recepção. Já o conhecia há muitos anos. Quase desde que para ali vinha. Era um polaco, que imigrara muito novo com a família, fugindo dos guetos da Nova Ordem. Um homem que ainda hoje calçava os sapatos ao contrário e dois números abaixo p’ra nunca se esquecer do sofrimento dos seus compatriotas.
Desviou as persianas da janela e o cabelo dos olhos. Olhou para baixo e espantou-se com o tamanho das pessoas lá em baixo. Pensou: ou o prédio cresceu, ou as pessoas estão a ficar mais pequenas! Mas não perdeu muito tempo a pensar no assunto. Havia coisas mais importantes a fazer, como lavar os dentes e ir para a cama. Pensou duas vezes e à terceira já se tinha esquecido do que tinha pensado da primeira vez. Por isso também não perdeu mais tempo a pensar nisso e foi para a cama sem lavar os dentes. Antes de se deitar, ligou para a recepção a perguntar as horas, só para se certificar. O polaco não estava de serviço essa noite e quem atendeu foi uma voz feminina de sotaque estrangeiro, mas não era espanhol. Ficou surpreendido e preocupado. Isto podia alterar-lhe os planos todos. A voz do outro lado da linha esperava que ele dissesse alguma coisa. Improvisou e começou a contar uma história fantástica de uma cabra que comia botões e tinha um corno encarnado e outro verde. Temia que alguém pudesse desconfiar do que se preparava, nessa noite. Qualquer passo em falso podia comprometer o esforço de meses e deitar tudo a perder. Percebeu que a rapariga do outro lado se impacientava e tentou então o tudo por tudo e perguntou-lhe as horas. Depois de um breve silêncio, ouviu-se um clique na linha e uma confusão de vozes em fundo, falando num dialecto que desconhecia. Pigarreou em catalão e depois em siciliano, mas do outro lado continuava a confusão de vozes em fundo. Tentou então cantar o hino nacional sueco, a ver se impressionava alguém. Foi então que do outro lado da linha, uma voz aflita gritou qualquer coisa, que não percebeu bem, mas lhe pareceu: hortaliça! Depois o silêncio. Poisou o auscultador e foi até à porta verificar se estava bem fechada. Fechou também a boca e abriu os ouvidos, um de cada lado. Ligou a televisão e regulou o som de maneira a não chatear os vizinhos, mas a abafar os ruídos do quarto. Depois foi até à janela e olhou, desta vez, para cima. Arre gaita, pensou, se isto é alto lá para baixo, lá p’ra cima não é mais baixo. Ficou confuso com esta conclusão espantosa e recuou até à cama, num movimento cambaleante e exótico. Deixou-se cair sentado, ao pé da cama. Mais propriamente, no chão. Ao pé da cama, mas no chão. Foi nesse momento que bateram à porta e ele aproveitou p’ra dizer que não estava. Disse-o de forma tão pouco convincente que ninguém acreditou e continuaram a bater na porta, com insistência. Sabia que era com insistência. Conhecia-lhes os métodos. Sabia que eles batiam sempre com insistência. Já era assim desde o tempo dos Campos de Amendoim Torradinho. Deixou-se ficar onde estava e começou a fazer caretas virado para a porta, em silêncio. Caretas horríveis. Sabia que eles odiavam aquelas caretas. Fazia-o de propósito, assim, atrás da porta, sem eles verem. P’ra que nunca soubessem, sequer, o desprezo que lhes tinha. E de repente deixaram de bater. Deixou-se ficar alerta. Arregaçou as pernas das calças do pijama e descalçou os chinelos para poder deslizar melhor p’lo chão do quarto. Subiu para a mesa-de-cabeceira e daí deslizou p’lo varão do cortinado até à cómoda, encostada na outra parede, em frente. Parou, de ouvido à escuta e rosa branca ao peito. Foi aí que a televisão começou a ficar com interferências e a deitar fumo por trás. Lá fora, uma sirene rasgou o ruído da rua, como um gato que tivesse entalado o rabo, por exemplo, na porta de uma ambulância. Sabia que tinha pouco tempo e mesmo o pouco tempo que tinha era bem capaz de chover. Se bem que a chuva podia acabar por ser uma preciosa aliada. Saltou para o chão, sem medo de ser ouvido. A ideia de que podia chover, deixara-o mais confiante e descontraído. Tanto que foi direito à lata dos caramelos e tirou uma mão cheia, com que encheu a boca com papel e tudo. Aproximou-se da televisão e deu-lhe uma pancada seca com a mão fechada. Depois outra, com a mão aberta. Não sentiu grande diferença e decidiu-se finalmente por um biqueiro no meio do ecran. Levantou a perna, tomou balanço, mas esqueceu-se momentaneamente do que estava a fazer e deixou-se ficar assim, de perna levantada, até sentir a outra perna dormente. Quando isso aconteceu, acordou-a com doçura e torradinhas. Era assim que ele as convencia a não o abandonarem. Sempre fora muito cuidadoso com o corpo. Estimava-o e defendia-o de todas as agressões externas. Costumava dizer: se ninguém escuta a voz do corpo, falarei eu por ele, custe o que custar, doa a quem doer. E assim era. Muitas vezes o viram em acesa discussão, falando pelos cotovelos, ou pelos joelhos, ou mesmo p’lo nariz, quando se constipou. Mas naquele momento sentiu que era a altura de ficar calado e não tirar conclusões precipitadas. Calculou, de cabeça, a distância entre as duas janelas e pensou que de nada lhe servia saber a distância entre as duas janelas, se não soubesse a velocidade a que o auscultador do telefone voaria, se o atirasse dali, de onde estava, até à outra ponta do quarto. Era uma tentativa arriscada demais até mesmo para a inutilidade do acto em si. De qualquer forma nunca conseguiria lançar o auscultador do telefone, com o aparelho ligado à parede. Foi essa conclusão que, uma vez mais, o tranquilizou e deu ânimo para comer mais uma mão cheia de caramelos.
Sentia-se tão descontraído que lhe apeteceu tomar banho. Foi até à casa de banho e pôs a banheira a encher. Depois espreitou p’la janela e esperou que o semáforo ficasse verde para entrar na banheira.
Tomar banho tinha, para ele, um efeito imprevisível. Muitas vezes saía da água a pingar, outras vezes caía numa espécie de transe cataléptico e desatava a cantar ópera em alemão, segurando o sabonete como se fosse um microfone. O problema é que o sabonete passava o tempo a escorregar-lhe da mão, o que o obrigava a baixar-se e não se percebia metade do que dizia, então, nessas alturas. A verdade é que, nas outras, também não. Mas isso nunca o preocupou. Era frio e calculista. Pouca gente alguma vez soube da maldade que se escondia por trás daqueles olhos piscos. Partir as pernas a um gajo primeiro, para depois ele aprender a andar. Uma teoria que ele defendia com um sorriso enquanto, levava a cerveja à boca. Mas agora era com a boca cheia de caramelos que pensava que, se calhar, era bem melhor assim! Toda a gente pensava que ele tinha embarcado no navio para as ilhas, enquanto, na verdade, ele se escondia ali, manobrando na sombra toda a sinistra estratégia, que essa noite haveria de virar o curso da História, de forma radical e definitiva. Tentou não se sentir mais confortado com este pensamento, porque já não tinha mais caramelos. Saiu da banheira, que sempre era o melhor que fazia. Ou isso, ou as malas para o Quilimanjaro. O problema é que não sabia falar quilimanjês! A menos que lhes fizesse um boneco. Mas será que os quilimanjares eram gente de bonecada? … Odiava quando estas dúvidas o assaltavam. Ainda por cima à saída do banho, quando o apanhavam só com uma toalhita à volta das pudendas. E ainda mais, uma pessoa ralar-se por causa dos quilimanjares! Mas quem eram os quilimanjares, afinal?! Parece que já nem o banho lhe estava a fazer proveito. Tentou acalmar-se. Mastigou mais uma mão cheia de caramelos imaginários e achou-se uma besta. Pois se estava a imagina-los, porque não imaginar coisa mais interessante que caramelos?! Tentou afastar esses pensamentos da cabeça e dos ombros. Fez um esforço de concentração, a ver se se lembrava de onde tinha posto as chaves do frigorífico, até que se lembrou que o frigorífico não tinha chave e respirou de alívio. Faltava pouco mais de meia hora e ele sabia que esses 30 minutos iam passar de forma dolorosa e fatal como um pepino. E um pepino dos doces, que ele há pepinos, que nem em 3 quartos d’hora, uma pessoa faz a digestão daquilo! Aguentou-se à bronca, que é sempre o melhor que se pode fazer, nestas alturas. E no caso dele ainda mais, que a altura era de um vigésimo andar! Por este andar, dizia ele, não vamos longe! Era o que ele costumava dizer: às vezes, era preciso partir as pernas a um gajo primeiro, para depois ele aprender a andar. Claro que muitas vezes, ninguém lhe agradecia o gesto, mas, a isso já ele se habituara. Não guardava rancores, nem cobrava facturas. Ele era, definitivamente, mais fracturas. Expostas, impostas, descompostas. De resto, não havia muito mais a acrescentar. Raras vezes o ouviram dizer qualquer coisa parecida com: o que é que eu ia a dizer, que não era mentira… Nada disso e até, às vezes, muito antes p’lo contrário! Quanto a rancores eram mais as vozes que as nozes. Outras vezes mais o que ouvides do que as pevides, quando não é mais o que apanhas do que as propriamente castanhas! A verdade é essa e isso ninguém nunca o conseguiu provar nem desmentir. Ora toma e embrulha, como se dizia na sua Bronx natal. Já lá não ia desde a Páscoa, mas nunca lhe perdera o jeito. Fazia os melhores embrulhos de toda a zona. Claro que toda a gente sabia o que ia dentro dos embrulhos, mas todos faziam que acreditavam que não sabiam de nada. Era melhor para toda a gente e toda a gente ficava melhor assim. Sentia às vezes aquela guinada violenta na coxa esquerda e isso lembrava-lhe os dias difíceis em que corria à frente da carroça do lixo, por aquelas vielas sujas, onde os gatos vão deixar as espinhas que já não comem, aqueles becos imundos e fundos como o diabo que os pintou. Aí então é que era pior! Estão a ver um camião do lixo a fazer a manobra num beco? Era sempre uma tourada, os homens do lixo acabavam sempre por se engalinhar numa zaragata do caraças e o lixo ficava por apanhar e que se lixe. Dias difíceis, em que as nêsperas não caíam do céu, nem os papos secos se vendiam nas farmácias! Resistiu a tudo. Sobreviveu e tornou-se forte. E ali estava, em cuecas e chinelos de quarto, pronto p’ra qualquer eventualidade, ou surpresa e prestes a tornar-se o homem mais importante do planeta inteiro, ou p’lo menos de uma parte jeitosa.
As luzes da rua davam ao quarto um aspecto de filme barato e sem enredo. Não gostava particularmente do aspecto, mas como era dado, dava-o de barato. O que o preocupava eram as sombras! As sombras chinesas, em especial. Nunca as compreendeu verdadeiramente. Isso irritava-o e deixava-o apreensivo. As sombras chinesas eram um mistério para ele. Tentava imitá-las e sentia-se ridículo. Ou então ficava muito quieto, à espera que se movessem. Esperando apanhá-las em falta, ou num movimento em falso. E aí, sentia-se mais ridículo ainda.
Partir as pernas a um gajo! Sabia que a violência da imagem lhe tinha já poupado muitos amargos de boca, como daquela vez em que o avisaram que a sopa estava azeda. Foi-se ao cozinheiro, partiu-lhe as pernas, p’ra ele aprender e veio-se embora, sem comer a sopa. Não se vangloriava destas coisas, mas tinha de admitir que lhe dava muito jeito a fama que tinha no submundo do crime e nalgumas adegas cooperativas. Dava-lhe, por exemplo, para andar de metro sem pagar, o que, nos dias de hoje, já não é pequena vantagem!
Eu sei dos meus fantasmas
Dos meus medos
Terrores que p’ra mim não tem segredos

Sei dos meus presságios
Meus augúrios
Sei o que sinto em mim
Os meus suores

Conheço os mecanismos
E a mecânica
Comando os equilíbrios à distância
Controlo as temperaturas
Da demência
A data não interessa. O bezerro sabe-se que nasceu esperto e saudável e que teve um crescimento normal dentro daquilo que se esperava. Digamos que cumpriu os objectivos, mantendo uma discrição conveniente e útil, sem arroubos de brilhantismo bacoco, que lhe poderiam ter valido a arena. Nada disso. Sensato e sem pressa, preferiu guardar-se para o Grande Final. Discreto, como sempre, reparte agora, à minha mesa, os aplausos, com as batatas e o meio jarro de branco da casa.
Sejamos pragmáticos – disse ele, apontando-lhe a pistola ao meio da testa – se eu agora disparasse, aí bem no meio desses olhinhos piscos, ficava um buraquinho do tamanho de uma azeitona, por onde mal escorreria um fio de sangue, escuro e peganhento. Mas a parte de trás da cabeça, por onde a bala saísse, a coisa aí seria um bocado diferente. O tiro haveria de desfazer-te a nuca, espalhando os miolos por todo o lado. Uma coisa nojenta de se ver. Nojenta e deprimente, garanto-te eu.

Arre gaita, homem, você assusta-me!