Entrou no café e disse: oh anhuca traz-me burriés!
Ele devia saber que muita gente não gosta de ser tratada de certas maneiras.
O rapaz rodou sobre os calcanhares e fitou-o nos olhos.
Toda a gente se calou. Os que estavam sentados e os que estavam de cócoras. Os que estavam deitados, a maioria já estava a dormir. Alguns até roncavam. Aliás, o ronco desses era a única coisa que se ouvia, nesse momento, em toda a sala. Como se uma legião fantasma de burriés gigantes avançasse sobre as cabeças de todo o mundo sem que nada o pudesse impedir.
E ficaram assim um bocado. Há quem diga que terá sido um bom bocado. Mas a maioria desses provou-se entretanto sofrerem do sindroma do pastel de nata. Perde-se a noção do tempo.
Então? Repetiu ele. Aquela insistência veio adensar ainda mais a tensão que já pairava no ambiente. O rapaz não pestanejou, continuando a olhá-lo fixamente nos olhos, sem se mexer. A situação ameaçava eternizar-se, quando a porta se abriu e entrou uma lagosta suada e a correr que nem uma sapateira. Todos os olhares caíram sobre a recém chegada. Depois de se levantarem, voltaram aos olhos dos presentes acabados de desembrulhar, enquanto a lagosta se assoava a este guardanapo. É verdade! Este mesmo que aqui vêem. É aliás a única prova de que tudo se passou realmente e nada disto é fruto da minha imaginação, ou vontade de vos agradar e entreter com histórias de fantasia e absurdo.
Parada no meio da sala, alvo de todos os olhares, a lagosta sentia-se um pouco desprotegida e ridícula. Olhou-os a todos em volta girando as antenas, como se procurasse o National Geographic das lagostas. A temperatura em volta ia gelando à medida que a água aquecia p’ró banho. Ninguém se arriscava a mexer um dedo, um café, ou sequer onde não fosse chamado. Um silêncio religioso e contundente escorria p’las prateleiras dos salgadinhos. O tempo pingava da torneira da tuborg. A lagosta desejava ter nascido no Minho, chamar-se Augusta e viver casada com um guarda-florestal.
O rapaz avançou um passo. Arrastava os calcanhares de forma provocadora e cínica, que lhe dava cabo das solas e nem produzia grande efeito. Parou dois metros mais à frente. Era perceptível já, a espuma que lhe começava a escorrer p’lo canto da boca e p’lo nariz. As pessoas na sala agarravam-se às cadeiras, batendo os dentes com o frio, que era cada vez maior.
A lagosta arrastava-se discretamente p’lo chão, tentando sair de cena, o mais rapidamente possível, sem ser notada. É fantástica a capacidade das lagostas, de se disfarçarem para escapar aos predadores e pessoas com mau feitio. Algumas espécies conseguem assumir formas estranhas, como rissol de camarão, ou chamussa de frango com caril.
O rapaz fez então uma coisa assombrosa. Abriu ainda mais os olhos e falou p’los cotovelos. Literalmente p’los cotovelos. Claro que, como tinha as mangas por cima, a voz saia-lhe um pouco abafada, mas dava perfeitamente para perceber o que dizia e o tom em que o fazia. Burriés! Burro és!
O sangue gelou-se nas veias e artérias principais das pessoas e dos animais. Tinham acabado de ouvir a pior coisa que alguém podia ouvir ao cimo deste mundo e continuar vivo, como se não tivesse ouvido nada! A mais antiga praga, o mais violento esconjuro que os Antigos deixaram em tenebrosa herança, sinistro legado.
Via-se que ele não estava a ver a verdadeira dimensão do problema, mas, mesmo assim, qualquer coisa o deve ter alertado. Olhou em volta e esboçou um sorriso. Deveria dizer: forçou um sorriso. Depois, olhando para a lagosta e coçando a cabeça, também ele se começou a transformar em carapau de escabeche. Há quem garanta que ainda sugeriu tremoços, se fosse possível; mas também isso não é certo e mesmo se fosse, não era relevante para a narrativa, nem adiantaria nada à verdade dos factos.
Quanto ao guardanapo. Sim senhor. Limpem-se os senhores a ele, que eu por mim, lagosta, nem aprecio muito.
sexta-feira, 21 de julho de 2006
“OH ANHUCA TRAZ-ME BURRIÉS”
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