domingo, 3 de julho de 2005













Meti a chave á porta e ela lá estava. Sentada no sofá da sala. Tinha ligado a televisão e mal se mexeu quando entrei. Parecia mesmo que nem me via e lhe eram absolutamente indiferentes as imagens que se agitavam em silêncio no ecrã. O silêncio da casa, só era quebrado p’lo matraquear da ventoinha eléctrica, espalhando o ar em toda a volta, num gesto repetitivo e sincopado.
O cabelo levantava-se-lhe um pouco, de cada vez que a ventoinha soprava na direcção dela. E era o único movimento que se lhe apercebia, enquanto os olhos se lhe perdiam p’la sala, vagos, aparentemente fixando-se em nada e nada vendo. A morte. Há dias que a vejo sentada ali, sempre no mesmo sítio, sem esboçar um gesto ou intenção. Procuro-lhe o olhar e parece que está sempre a olhar para outro sítio, ou através do meu corpo, para além do fundo dos meus próprios olhos. Há alturas em que sinto a irritação subir-me p’lo peito e apetece-me gritar-lhe aos ouvidos palavras obscenas, beliscar-lhe a expressão ausente, sacudi-la p’los ombros. Outras vezes queria deitar todo o peso do meu corpo no colo dela e que a mão dela me acariciasse a cabeça, muito de leve, como a mãe ao filho que adormece, ou a virgem da pietá a um cristo descido da cruz. Mas ela continua ali sentada, sem um gesto ou reacção, como se não me visse, mas sabendo-me todos os gestos e pensamentos. Gostaria de a achar elegante e sentir-lhe o desejo e o encanto, mas, na verdade, acho-a uma seca e uma visita bastante estúpida e inconveniente.


26 maio 05 júpiter

4 comentários:

Anónimo disse...

Porque é que havia de ser esta língua em que tu escreves (desculpa a familiaridade, mas eu, da mesma forma que sou familiar a toda a gente, sou também naturalmente familiar com toda a gente...) mais apta a descrever a realidade do que outra qualquer? Se escrevesses em alemão, por exemplo, provavelmente não falarias de mim da mesma maneira, e garanto-te que eu sou exactamente igual na tua terra e nas terras dos que falam alemão – só o género gramatical é que muda. E o género gramatical, Belfaghor, é só o género das palavras e não o género das coisas que elas designam. Estás farto de saber isto. Porque me querias então feminina? Só porque a palavra que me diz é do género feminino em português? É pouco. Um bocadinho mãe, um bocadinho amante? Ora, Belfaghor, porque não pai e amigo?
Estúpida e inconveniente. Obrigado pelo café, como se diz algures. Mas que esperavas tu de mim, de mim que sou sempre a mais estúpida das coisas, porque não há racionalidade que me abarque, e o maior dos inconvenientes, porque aos vivos só a vida convém?
Enganas-te numa coisa. Sei-te os gestos, é verdade, porque os observo, mas não faço ideia do que te vai no pensamento. E, se queres saber, nem me interessa....
Vai-te habituando, pá. Terás de suportar a minha presença o resto da vida. Como já a suportaste – será que sem o saber? – os dias todos da vida que já viveste. Terás de me suportar assim, vaga, apática, indiferente às tuas rotinas e aos teus desejos, até ao dia em que me decida, enfim, a sair deste meu mutismo e deste meu alheamento e te entenda calorosamente a mão, quase camarada:
“Venham de lá esses ossos!”

morte

Anónimo disse...

A MORTE é uma mulher
(que mais podia ela ser?),
nossa amantíssima mãe!
A MORTE... E a VIDA também!

Maria Ondina do Rosário Tavares Esteves, de Lisboa, está claro, senão "mãe" e "também" não rimavam.

Anónimo disse...

"Terás de me suportar assim, vaga, apática, indiferente às tuas rotinas e aos teus desejos, até ao dia em que me decida, enfim, a sair deste meu mutismo e deste meu alheamento e te entenda calorosamente a mão(...)".

Já o suspeitava - a morte escreve mal! Faz parágrafos enormes, ilegíveis de tão compridos que são. E dá erros. Quer dizer, dá gralhas, ou enganos, ou o que lhe queiram chamar. Ó sua morte em pé que você é, é "te entenda a mão" ou "te estenda a mão" que você quer dizer? Ou será que é "que te entenda a mãe", sua (morte) macaca?
Mas o que é que você quer entender da mãe do rapaz? Vá-se esconder, seu cangalho, seu monte de ossos!

Anónimo disse...

"Life's a bitch and then you die"
do grande poeta (inglês) que é o povo inglês

A VIDA é uma mulher?
Olaré ó 'tou-t'a ver!
Uma cadela, isso sim,
e morre a gente no fim!

Valéria Idalina Duarte Alves, de Cão, freguesia de Castro Laboreiro